Série de terror baseada em jogos infantis da Coreia do Sul bateu recorde da Netflix. Sucesso é resultado de mais de duas décadas de aposta do país em cultura pop como indústria rentável e estratégica
Rafaelle Gomes
Fonte: g1.globo.com
Em: 13/10/21
Se hoje o mundo não consegue tirar a "batatinha frita, 1, 2, 3" de "Round 6" da cabeça, é porque a Coreia do Sul trabalhou por mais de duas décadas para transformar sua produção cultural em lucro e poder.
"Round 6" Imagem: pinturasdoauwe.com.br |
Em
1994, o país queria se modernizar após anos de censura e governos militares.
Kim Young Sam, primeiro presidente civil eleito em 30 anos, achou um dado
curioso: o filme americano “Parque dos dinossauros” superou o lucro de 60 mil
carros coreanos da Hyundai.
O caso
está em uma reportagem do jornal “Los Angeles Times” de 1996, que explicava o
interesse dos sul-coreanos na indústria audiovisual dos EUA. Vinte e cinco anos
depois, o país que apostou no entretenimento exporta sucessos como o filme
“Parasita” e a série “Round 6”.
Os
brasileiros podem ficar surpresos com a vitória do Oscar em 2020 e,
agora, com o fenômeno popular da nova série em 2021. A história de terror
baseada em brincadeiras infantis coreanas se tornou a série mais vista da
história do serviço de streaming.
A face
mais conhecida dessa onda até hoje no Brasil era a musical. Mas tal
"onda coreana" (ou "hallyu", na língua local), semeada nos
anos 90, cultivada no início dos anos 2000 e colhida agora, também fez brilhar
o k-drama, as produções de TV da Coreia do Sul. Exportar essas histórias
foi um projeto de início improvável e hoje bilionário.
Negócio
na China
A
primeira façanha do “hallyu” aconteceu bem antes de o BTS existir. Em 1997, o
k-drama “What Is Love” virou um sucesso na TV chinesa, a CCTV. A emissora
controlada pelo estado, de conteúdo restrito e público gigantesco, se abriu
para o k-drama.
No
meio da crise asiática do final dos anos 90, era um sinal de que entretenimento
é coisa séria. A Coreia do Sul, antes considerada atrasada e fechada, se jogou
de vez no mundo.
Foi
nesta época que o Ministério da Cultura, que havia sido criado em 1990, começou
a receber mais investimentos e modernizar seus programas. A atenção não era
apenas às manifestações tradicionais coreanas, mas também à cultura pop.
"A
Coreia investe na área cultural porque achou que era um mercado de futuro, que
vai trazer resultado. Nos próximos anos, o mercado cultural vai crescer mais
que os de Tecnologia da Informação e de automóveis", disse Sang Kwon,
diretor do Centro Cultural Coreano no Brasil.
A onda
coreana rende ao país o chamado "soft power" (poder brando), termo
que descreve influência de uma nação através dos seus produtos culturais. Os
k-dramas ganharam o coração até dos vizinhos coreanos do norte, que pirateiam e
contrabandeiam fitas dos programas.
Música
e TV estão longe de serem casos isolados de sucesso da Coreia do Sul. O país
triplicou seu Produto Interno Bruto (PIB) entre 2000 e 2018 - de US$ 500
bilhões a 1,5 trilhão. O “hallyu” faz parte da inovação em cultura e tecnologia
que ajudou neste salto.
O
orçamento do Ministério do Turismo, Cultura e Esportes da Coreia do Sul em 2021
foi de 6,8 trilhões de yuons - cerca de R$ 31 bilhões, mais de dez vezes maior
do que o do Brasil, que foi de 2,2 bilhões para as três áreas.
Em
2019, a exportação de produtos culturais da Coreia do Sul cresceu 22,4% e
chegou a US$ 12,3 bilhões. O objetivo é incentivar artistas e empresas para
somar investimento público e privado. Agora, até a americana Netflix entrou na
roda, e planeja investir US$ 500 milhões em dramas coreanos.
Em 2017, uma pesquisa do Ministério do Turismo da Coreia do Sul indicou que metade dos visitantes estrangeiros decidiu fazer a viagem após ver o país em alguma série de TV ou filme.
Histórias
de família... e dívidas familiares
O
k-drama ganha a América duas décadas após conquistar a China, baseado em
histórias românticas de conteúdo familiar (palatáveis ao temido governo
chinês), e se expandir para o resto da Ásia, inclusive o Japão, que antes
ditava o que era “cool" no continente.
“É preciso quebrar a barreira do preconceito para assistir um k-drama, mais do que para ouvir o k-pop. Mas, para divulgar a cultura, o k-drama consegue fazer melhor, porque mostra coisas do dia a dia da cultura coreana que só por uma música você não vai saber”, conta Manu Gerino, dona do canal do YouTube Coreanismo, especializado em k-dramas.
Manu Gerino do canal Coreanismo Imagem: youtube.com |
Durante
um tempo, os k-dramas foram estereotipados pelo conteúdo familiar e
água-com-açúcar. Mas "Round 6" mostra, com doses intensas de terror e
crítica social, que o cardápio é diverso. “Hoje temos acesso a mais gêneros,
porque antes vinham ao Brasil só romances e comédia romântica, então a gente
tinha uma visão idealizada do que é o coreano", diz Manu.
Ela
aponta uma característica dos roteiros que pode ter ajudado no sucesso do
k-drama: contar histórias sobre a cultura local com um pano de fundo de dilemas
universais - seja amor, família ou, no caso de "Round 6" e
"Parasita", a pobreza e a desigualdade econômica.
"Há
um encontro do global com o local, um misto entre ser da Ásia e ser
internacional. Tem algumas coisas nos dramas coreanos que se relacionam muito
facilmente com produções dos EUA, da Europa e do Brasil", diz Manu.
Um
exemplo: os brasileiros podem não conhecer os jogos infantis do folclore
sul-coreano, mas não devem ter dificuldade para entender o drama da pobreza e
das dívidas dos personagens de "Round 6", que os leva a participar do
jogo violento.
Série coreana ‘Round 6’ estreou em 17 de setembro e lidera entre os programas mais vistos da Netflix Imagem: glamurama.uol.com.br |
A
atuação dos sul-coreanos costuma causar menos estranhamento do que dos
japoneses, por se aproximar mais do estilo ocidental, explica Manu. Para quem
gostou de "Round 6", ela recomenda os k-dramas "Black",
"Strangers from Hell" e "Além do Mal".
"Eles
sempre conseguem fazer produções muito comerciais e, ao mesmo tempo, ter uma
crítica social ou fazer refletir sobre algo da vida", diz a dona do canal
Coreanismo.
Biscoito Dalonga é uma das brincadeiras infantis mostradas em Round 6 Imagem: vogue.com |